14 fevereiro, 2011

Nietzsche e a Criação de Valores

Essa postagem é um ensaio sobre a moral de Nietzsche originalmente apresentado em um trabalho acadêmico de Ética Aplicada.
Já foi publicado em outros dois blogs e agora o apresento aqui:

Introdução


O termo Moral de Rebanho foi apresentado por Nietzsche em sua obra, através de livros como Além do Bem e do Mal, Genealogia da Moral e O Anticristo. O conceito por trás das próprias palavras nos remete a uma espécie de psicologismo moral que perpassa a filosofia nietzscheana, cria uma base de discussão e questiona a moral vigente em sua época e que continua válida até hoje.

A moral criticada por Nietzsche é uma invenção dos fracos, que inverteram o sentido de bom e virtuoso para favorecer o ascético, o que nega o corpo em favor da alma, e que, portanto nega a vida. Nietzsche chama esse tipo de moral de “moral do plebeu” ou mesmo de moral do escravo em contraposição à moral do homem ousado e forte, nobre. Tudo isso baseando-se numa premissa de que o mundo humano se move por ações morais; ações essas determinadas e justificadas por representações de valor relativas ao bem e ao mal.

Mostrar em que consiste o bem e o mal é o primeiro passo para entender e justificar as ações morais, e para tanto, Nietzsche analisa historicamente as bases do pensamento e da filosofia ocidental. Ele percebe uma linha de pensamento, uma pista escondida entre as tantas morais existentes. Ele mesmo se refere a um psicologismo capaz explicar esse tipo de comportamento social, essa necessidade de se reunir em rebanho, tão natural entre os seres humanos. Critica profundamente os valores dominantes no mundo ocidental, a maneira como forçam o indivíduo a se socializar mediante suas regras e seus valores antinaturais, que fogem ao instinto vital e natural.

Mas como podemos perceber o natural no homem? Nietzsche não esclarece diretamente; revela apenas que a condição em sua sociedade reflete o homem de rebanho, fraco, com sua moral deturpada.

A sociedade ainda hoje é essencialmente a mesma, nossa moral e costumes básicos os mesmos. E a crítica de Nietsche permanece atual, aguardando a transvaloração que colocaria o homem em sua condição mais viril, mais nobre e natural.

A Filosofia Moral

O pensamento de Nietzsche questiona um princípio básico de todo pensamento ocidental: a idéia de igualdade entre seres humanos, presente em religiões judaico-cristãs e em muitas sociedades onde todos “são iguais perante a lei”. Como é possível que exista igualdade entre homens que se tratam com tanta diferenciação, inclusive em sua dicotomia entre senhor e escravo, nobre e plebeu? Não é possível para a moral tradicional uma hierarquização, pois isso foge à idéia básica de bondade natural inerente ao ser humano, não haveria sentido igualitário. O ser humano é movido pelas dores da existência, segundo Nietzsche, e somente pelo sofrimento pode se desenvolver ou conquistar alguma coisa.

Nesse contexto, não se comporta a idéia nietzscheana de Vontade de Poder, na qual o indivíduo quer buscar o que é melhor para si antes de pensar no outro, na sociedade. É, em essência, uma forma de fundamentação e valoração distintos da modernidade e do idealismo que pretendem pressupor a ausência dessa vontade de poder, logo, ausência de relações entre senhores e escravos.

Nesse sentido, a moral de rebanho procura tratar como apropriado e bom aquilo que é comum, vulgar e fraco no homem, mas que pode ser alcançado por qualquer um, simplesmente pelo princípio de igualdade entre os homens. Para o filósofo ela é a moral do ressentimento do escravo para com seu senhor, uma mudança radical de visão, capaz de derrubar os pilares de valores antigos.

Construindo os Valores

O princípio de que a alma e a razão devem orientar a busca da verdade e a ética, que perpassa a filosofia desde Platão até a modernidade é duramente criticado por Nietzsche que vê nessa valoração um pecado contra a vida. Para ele o que deve determinar a moral é a vontade de poder; a moral deve ser afirmadora da vida, dos instintos e do corpo, esse como instrumento primeiro da vida e da razão, base da alma. Negar essa idéia em prol do além ou da vida eterna é uma negação da vida na terra, a única que tem valor e, portanto, a mais importante. É precisamente aí que se afirma o ser humano, se define como ele é. O mundo é dor, sofrimento e vontade; o além é apenas uma idéia de salvação.

Na moral de rebanho a afirmação do ideal ascético, de purificação do corpo em prol da elevação da alma nega essa idéia de afirmação de si, busca uma renúncia de si e da vontade para justificar e explicar a existência humana. Por isso pôde desenvolver-se tão profundamente no espírito humano a ponto de subverter o ideal antigo, e as virtudes nobres. É muito mais fácil e cômodo aderir a um ideal transcendente do que brigar sozinho por uma auto-afirmação, além disso, sugere uma explicação ou redenção para a existência humana, no plano divino. A idéia de pecado original cristã teria aqui um papel fundamental na consolidação dessa crença, sendo capaz de convencer até mesmo os homens nobres de sua “validade”.

A caridade, a compaixão, a humildade e a igualdade características desse ideal ascético é que são as virtudes e valores a serem buscados na sociedade e individualmente. Não há aqui espaço para uma moral individual, uma vez que o interesse de um deve ser consonante com o de muitos para preservar a idéia de igualdade inerente a toda moral.

Na busca dessas virtudes se constrói a representação do bem, e do mal que dão forma à ética, a moral e à sociedade como um todo. Mas isso tendo em vista uma idéia de que a vontade de poder deve ser suprimida, negada.

A Afirmação da Moral de Rebanho


Aqui se pode identificar a criação dessa moral, através da propagação dos ideais comuns em uma sociedade. Todo o ideal propagado em prol dessa visão, começa a tomar forma mundial com o cristianismo, apesar de ter existido em outras formas desde a Antiguidade, com Platão, Plotino, os estóicos e outros.

Os cristãos se agarraram a esse tipo de moral de forma tão firme e convincente que puderam aos poucos subverter o poderoso império de Roma.

Nietzsche mostra como essas idéias ganharam voz com Paulo, o apóstolo, quando ele pregou no mundo antigo a religião nova e o novo “mundo”. Com o advento do reconhecimento oficial no Império, com a ascensão de papas poderosos e todo período medieval, ligado à política e poder militar, a religião cristã estabeleceu o paradigma ideário para o mundo ocidental, o mesmo ocorrendo em menor escala com Islamismo ou Judaísmo no Oriente.

Os séculos de doutrinação, onde a própria bíblia se refere aos fiéis como rebanho, reforçaram cada vez mais esse ideal e as virtudes que ele propagava, criando uma espécie de inconsciente coletivo capaz de sozinho, servir de referência moral às sociedades.

Os Valores do Ressentimento

As virtudes que guiam essa moral trazem consigo uma série de idéias implícitas, tacitamente aceitas pelos cidadãos dos Estados em que ela está vigente. O que é bom torna-se claro: caridoso, humilde, sincero, leal, justo. Os valores se fazem com uma boa família, um respeito pelo Estado, pela Igreja, pelo próximo; deve-se colaborar para a manutenção das leis e dos costumes sociais em prol do bem comum.

Em muitos aspectos, isso não está incorreto, Nietzsche apenas critica a maneira como se dá esse tipo de valoração e o plano de fundo (as virtudes) que o alimentam. Mas como esse processo psicológico passa por uma auto-avaliação de cada ser, ele acredita que mesmo os filósofos foram incapazes de perceber seu erro e não puderam evitar que esse ideal ascético tomasse forma.

No mundo moderno, séculos depois de Nietzsche, esses valores ainda permanecem, guiam as ações morais e éticas; busca-se harmonizar os instintos humanos, os preconceitos e as rivalidades; tenta-se apaziguar as almas do povo comum com ações caridosas, revoltas contra crimes banais e pequenas outras demonstrações de humildade e compaixão.

Mas a coragem, a temeridade, a ousadia e a força (tão necessárias para qualquer desenvolvimento humano) são desencorajadas. Aqueles que demonstram essas características são admirados, mas não seguidos por todos. Há um ressentimento com relação a esse tipo de indivíduo, como uma relação confusa de amor/ódio. Desses indivíduos vem o desenvolvimento e as idéias que irão mover as massas e Nietzsche prega que deve deles emergir o novo tipo de filósofo capaz de provocar a transvaloração capaz de recolocar o Homem em sua condição mais natural. O mais irônico é que mesmo com todo o pensamento voltado para ideais de igualdade e fraternidade, ainda assim, elites comandam as massas, seja pela política, pelo trabalho ou religião, o povo é mantido em suas “virtudes” por um punhado de homens que compreendem esse processo de criação de valores e idéias e os manipulam.

O Mundo Moderno

Não se pode identificar hoje onde começa e onde termina o pensamento moral de rebanho sem uma base de estudos definida. O conceito de religião, mesmo em baixa relevância social, atua como um regulador desde a infância; a família propaga esses valores de modo natural, a sociedade se coloca como um apoio à idéia de comunidade, e o individual passa a segundo plano. Mesmo com o aumento de informação, a internet, a busca de afirmação e conquista característicos do capitalismo, mesmo com a impressão de egoísmo vigente, percebe-se de fundo, a moral de rebanho atuando. Se ela é mantida por uma casta ou não é motivo de discussão, mas podemos analisar a psicologia de cada nação, cada povo e do mundo em busca de padrões e em filosofia, dos comportamentos éticos e morais relativos à nossa explanação.

Seria como tentar perceber o comportamento de uma criança que diz uma coisa, mas se porta como se dissesse o contrário. O ideal da moral de rebanho está tão arraigado, enraizado em nossas instituições e nossa sociedade que é difícil sequer de discuti-lo, observá-lo em ação. Atentamente, mesmo nas ditas ações boas, ele atua; e ao agir ele se perpetua. Para Nietzsche é preciso que o indivíduo lute contra essa idéia e se afirme como ser, como um homem. Recupere sua virtude moral própria, forte e transformadora, capaz de buscar novos horizontes por si mesma.

Aspectos do Psicologismo Moral


Analisamos nesse presente trabalho apenas como se dá o desenvolvimento desse tipo de pensamento, da moral de rebanho apresentada por Nietzsche, sem nos atermos à validade ou não de seus conceitos, da necessidade ou não dessas virtudes para o mundo moderno; esse seria material para um ensaio à parte. Podemos perceber que há um padrão de pensamento, um comportamento humano característico do homem comum, incapaz de sobreviver sem a sociedade e suas regras, e para tanto, desenvolve mecanismos de convivência capazes de fazer essa regulação, com impeditivos morais, com virtudes definidas.

A transcendência dessas virtudes torna mais atrativo ao homem comum esse ideal por ele não poder perceber sentido em sua existência atual, almejando explicá-la no além, pela religião, onde as virtudes serão seu único consolo e em muitos casos, sua “poupança” de coisas boas para receber uma recompensa.

Nietzsche nos demonstra a necessidade de compreender essa psicologia moral ou social, de modo que assim se assegura a afirmação individual de cada ser humano, único meio de se atingir a liberdade e a plena paz de espírito, equilíbrio entre corpo, mente e alma. A ética que regulamenta o comportamento humano deveria aceitar o fato de que buscamos poder sobre nós mesmos em primeiro lugar e sobre os outros a seguir, aceitar que alguns foram feitos para mandar, para serem seguidos e admirados e o restante dos homens acatarem e servirem aos mais preparados. Não há uma moral por si, apenas aquela ao qual aderimos por essa necessidade gregária, por falta de coragem de ousar.

A sutileza da vontade de poder de Nietzsche se faz notar nas ações ditas malignas que observamos na sociedade atual, tais como roubos violentos, revoltas sociais, violência doméstica e outras patologias sociais crônicas, resultado de séculos de doutrinação ascética; o instinto humano, refreado por uma moral não natural, cobra seu preço da sociedade. Nietzsche parecia perceber isso e um de seus pensamentos encerra essa verdade: “A loucura é exceção no indivíduo, mas regra na sociedade”.

REFERÊNCIAS:

NIETZSCHE, Friedrich W. – A Genealogia da Moral.

_________ - Além do Bem e do Mal.

_________ - O Anticristo.

DELEUZE, Giles – Nietzsche e a Filosofia.

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