10 janeiro, 2013

Causalidade: possíveis erros de avaliação

  
          A idéia de causalidade surge da observação de que cada coisa é gerada por outra, cada fenômeno tem uma origem externa e diferente à ele mesmo. Alguns fenômenos podem ter causas internas numa espécie de rede intrincada de relações (como o corpo humano e suas reações fisiológicas). A causa precede o efeito, sendo impossível ser retroativa.

            Regredindo-se no raciocínio de que tudo é causado por algo, logicamente se chega à conclusão: é necessário que se tenha uma causa inicial, não causada por outra, um fenômeno auto-suficiente. Mas será que isso é realmente necessário? E mesmo que seja necessário, será dessa forma que as coisas funcionam?
            O pressuposto básico dessa idéia é justamente que o mundo teve um início, foi criado. Leva em consideração um tempo linear e em processo, vindo do passado para o presente e seguindo para o futuro, onde fatos e fenômenos se sucedem e causam uns aos outros num a cadeia direcionada.
            Entretanto, mesmo admitindo uma idéia de início do universo, as causas que se sucedem não são de uma mesma ordem direta. Em outras palavras, existem causas determinantes, necessárias e diretamente responsáveis por um efeito e existem causas indiretas, que seriam condições de possibilidade de que causas determinantes atuem, gerando efeitos complexos. Um exemplo: um graveto queimar. A causa da queima de um toco de madeira é o fogo, causado pelo acendimento de um fósforo (causa determinante), mas apenas porque a madeira estava seca, o fósforo foi inventado, o material é inflamável,... (causas indiretas).
            Ao analisar a questão da causalidade se vê um raciocínio que prevê um retorno à causa anterior do fenômeno, dela para sua anterior, daí para outra anterior e assim sucessivamente, devendo então chegar a uma causa inicial. Esse pensamento é errôneo por três motivos.
            Primeiro, as causas podem ser determinantes ou indiretas, não devendo ser confundidas e analisadas como se fossem de mesma ordem ou tipo, justamente porque ao fazermos o “salto” de raciocínio de uma ordem direta para uma indireta estaremos observando fenômenos que são hipóteses, condições de possibilidade ou meras probabilidades de serem causa de um fenômeno. As causas diretas podem chegar a dois ou três graus de determinação direta, mais do que isso é raro; na verdade a maioria tem uma causa determinante e o restante é indireto. Essa sutil diferenciação é suficiente para nos mostrar uma interligação entre causas e efeitos. Em nosso exemplo acima, a causa direta demonstra o efeito, mas depende de uma cadeia causal indireta que envolve muitas outras, sem ordem necessária estabelecida, o que já descaracteriza a cadeia causal, da forma como é comumente conhecida.
            Segundo, as causas que observamos retroativamente são “escolhidas” pelo sujeito observador, em especial nas causas indiretas, gerando mais erro de avaliação. Na medida em que se compreende que uma causa determinante é diferente de uma causa indireta, entende-se que ao buscar as indiretas estamos induzindo a busca, observando as possibilidades e escolhendo a mais provável ou mais aparente como causa de um fenômeno, não quer dizer que seja a causa mais verdadeira. No exemplo, podemos escolher como causa indireta determinante que a madeira é inflamável, mas nada impede outra pessoa de determinar que seja por não estar molhada que a madeira queimou.
            Terceiro, as causas que geram determinado fenômeno podem não ser únicas; uma série de fatos combinados ou relacionados é que gera determinados fenômenos complexos. Aqui é essencial diferenciar também os fenômenos: existem os que são simples (como apertar um balão e ele estourar) e os que são complexos como, por exemplo, o aumento da inflação (gerada por uma série de fatores combinados na economia). A relação entre fenômenos e fatos gera causas complexas, não determinadas diretamente, podendo induzir a erro na maioria das avaliações. Inclusive é possível avaliar um fenômeno por sua causa determinante direta e também apontar suas causas indiretas, uma não exclui a validade da outra, apenas acrescenta complexidade à compreensão do objeto de estudo, como já foi explicado no exemplo acima.
            Justamente pela aceitação tácita de um princípio universal, um começo para tudo, é que esse raciocínio lógico de causalidade permanece verdadeiro. Mas ao observarmos os fenômenos percebemos que as causas são bem mais complexas e indeterminadas do que se supunha ou, pelo menos, não relacionadas ao objeto de avaliação. Percebendo que também causas iguais geram fenômenos diferentes é possível compreender como as combinações e relações entre causas e fenômenos são o que determinam o que uma coisa é, como ocorre e o quanto é influenciada por seu meio.
            Se a causalidade é linear (e mesmo que não seja linear), ela tem um sentido e terá um dia um fim, uma finalidade ou geraremos causas infinitas. Mas então não seria possível: como a matéria é finita (uma vez que não criamos matéria nova, apenas modificamos estados de matéria já existente), as combinações possíveis de causas e fenômenos já deveriam ter sido atingidas se pensarmos o tempo como algo infinito. Não podemos estar num processo de tempo infinito de formação de possibilidades nessas condições; só é possível admitir que a causalidade, de algum modo, vem sendo erroneamente avaliada ao longo da história da filosofia. As causas ocorreriam em uma espécie de rede de causas ou relação de causas.
            Apontando esses possíveis erros, admitimos um mundo não teleológico; seguimos a idéia grega de mundo incriado, de matéria constante que sempre esteve no universo e apenas vai se aglutinando, formando padrões e possibilidades de combinação, gerando fenômenos, se destruindo e se recriando. Num processo de tempo infinito, essas combinações se esgotam em algum momento, gerando um recriar, um devir natural, capaz de justificar nossa impressão de linearidade e novidade a respeito de um fenômeno e suas causas, apenas na nossa perspectiva humana.
            Essa impressão errônea cria também a ilusão de um crescimento histórico e uma regressão capaz de chegar ao início das coisas analisando-se suas origens, como fazemos com os dados captados pela mente humana e na ciência, em geral. Nossa maneira de raciocinar nos leva a buscar origens, fundamentos: algo que não é determinante em relação ao universo e à matéria, ao fenômeno e sua causa.
            Ainda que o tempo não seja considerado infinito, admitindo que a teoria do Big Bang seja verdadeira, que o tempo do universo um dia se encerrará e tudo se esgotará, ainda assim não temos como garantir que o universo acabará, ou a matéria se destruirá. Até o momento não se tem notícia de uma observação natural de matéria sendo destruída; até mesmo em explosões atômicas, o núcleo rompido se transforma em resíduos radiativos, calor e gases.
 Apenas a nossa perspectiva e nossa maneira de se relacionar com as coisas materiais se acabarão. Postula-se que o universo se expande e que um dia cessará esse movimento; iniciará então um momento de regressão, estrelas se consumirão e tudo se tornará novamente matéria densa, uma enorme sucessão de “buracos negros”; posso me arriscar a dizer que isso é o novo ponto inicial, o novo ponto único originante que explodirá gerando novo Big Bang e novamente um universo. Matéria em constante alteração, recriando-se, expandindo-se e combinando-se: o Eterno Retorno de Nietzsche.
            Pensar a causalidade com olhos voltados apenas ao fenômeno, recriar o raciocínio lógico direto e se limitar à perspectiva humana não levam ao verdadeiro sentido de causa, ao verdadeiro causar. Esse pensar levou a filosofia a sempre considerar o mundo como algo criado, causado, tendo necessariamente que ter um criador incriado, uma causa primeira; e o mais importante nisso: um sentido.
O que sabemos sobre a matéria já é suficiente para demonstrar que a hipótese contrária (de um mundo eterno, não criado) é a possibilidade mais verdadeira e, portanto, mais relevante ao pensar filosófico. Mas ainda estamos presos ao paradigma linear, arraigado à causalidade de modo histórico. Quem consegue se ver corrigindo Aristóteles? Ou os epistemólogos modernos com seu arsenal de argumentos logicamente perfeitos e exemplos estranhos acerca de qualquer teoria de conhecimento? Não é a toa que se tem paradoxos em muitas de suas avaliações, como a causação retroativa ou os conceitos de tempo como sucessão de fenômenos e não linear[1].
            Contribuiu-se para essa persistente situação o pensar religioso, a ignorância científica e mesmo a acomodação dos filósofos ao pensar o conceito de causa e efeito. O que nos resta é avaliar o quanto as causas estão interligadas, o quanto as possibilidades geram fenômenos e como eles são complexos, sem perder o foco de que tudo isso não tem sentido ou finalidade, apenas é dessa forma. Nós, seres humanos, determinamos sentidos por pensar num sistema de causas e efeitos, não porque eles sejam verdadeiros no universo.


[1] GARRET, Brian: Metafísica: Conceitos-Chave em Filosofia, Porto Alegre, Artmed, 2008.

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